Parece que quanto mais se aproxima do fim de um projeto, mais e mais longo ele fica. Pelo menos era assim que Kauane se sentia depois de 2 semanas trabalhando sem parar no seu projeto secreto. Havia chegado aos “finalmentes” há um tempo, ainda assim, o fim do projeto não chegava. As partes mais difíceis da tarefa haviam sido cumpridas, é verdade, mas havia uma porção de outras coisinhas a serem feitas, como, por exemplo, um novo inventário para ser enviado para a Terra antes de liberada a começar a verdadeira etapa final do Projeto.
Kauane gostava de inventários, é claro; eles eram simplesmente úteis demais para serem ignorados em qualquer processo de criação e desenvolvimento. Apesar disso, estava particularmente cansada e produzir um inventário exige organização consciente. Pra dificultar um pouco mais, o seu procedimento de trabalho era um pouco… Bem, como dizer isso sem soar injusto com a menina? Era um processo bagunçado. O que era justificável. A criação pode até ser divertida, mas também exige foco, e na maioria das vezes Kauane tinha urgências para lidar em suas missões, o que dificultava a continuidade do processo. A manutenção e pilotagem da nave também demandava certa atenção da comandante, que estava sozinha pra gerenciar tudo isso.
De qualquer forma, ela não havia reparado o quanto estava perdendo tempo e provavelmente seguiria sem notar se não fossem os relatórios de Renan. Seu mais novo amigo, um atencioso engenheiro terráqueo, notou bem cedo que Kauane estava colocando os pés pelas mãos. Ele podia até não saber do que se tratavam os projetos da astronauta, mas sabia que algumas melhorias poderiam facilitar a vida dela no espaço.
Apesar de ser um pouco obstinada demais com o seu próprio jeito de fazer as coisas, Kauane sabia que ele estava certo. Havia muitas mudanças a serem implementadas – talvez por isso tivesse demorado tanto para começar a trabalhar nisso. Hoje, porém, não tinha como fugir. Além do seu projeto oficial, havia um segundo, um paralelo que ela queria começar o quanto antes…
No momento Kauane se deslocava novamente para a Estação Buran II. Apesar daquele lugar estar realmente bagunçado, havia uma série de resíduos que poderiam servir como recurso lá. Kauane seria oportunista: limparia o lugar enquanto coletava peças novas pra si; além disso, isso dava mais uma oportunidade de conhecer melhor a estrutura do ônibus estacionário.
Conectou o comunicador da Estação Buran II ao seu portátil acoplado ao traje e enviou a mensagem para a Terra:
– Renan? Na escuta? – Questionou a astronauta, aproximando o comunicador atado ao pulso do capacete que usava.
Passados alguns silenciosos segundos de espera, a resposta chegou:
– Olá novamente, Comandante K. Desculpe a demora, estava terminando alguns reparos por aqui. Espero que esteja sã e salva por aí!
– Sem problema. Cheguei em Buran, como pode notar pela mensagem que estou enviando. Estarei me comunicando em movimento, espero que não tenha problema pra você. Aliás, obrigada por se colocar à disposição pra me ajudar.
– Não precisa agradecer, Comandante. Quando você disse que precisaria de ajuda para fazer melhorias no processo eu até me empolguei! Como posso te ajudar?
– Eu vou trabalhar aqui por hoje, limpando a estação e recolhendo resíduos da nave para reaproveitá-los mais tarde, se tiver algo útil. Penso em finalizar nossa chamada agora e, quando necessário, eu te contato pontualmente para pedir orientação, assim também não te privo de fazer suas tarefas.
– Certo… Eu não sei exatamente como está aí na Estação, mas se já vale um primeiro conselho: Com certeza irá achar muita coisa, algumas úteis e outras não. O ideal, pra começar a otimizar o seu processo, é ter em mente o que você precisa.
– Sim, isso eu já faço – retrucou ela, um pouco contrariada – não posso correr o risco de acumular coisa que não vou dar uso.
– Perfeito. Ah, outra coisa: quando estiver coletando é importante agrupar e dar destino aos resíduos úteis assim que gerá-los, ou no seu caso, no momento em que encontrá-los. Se você deixar pra “organizar depois” pode acabar misturando e tendo retrabalho de separar novamente aquele recurso.
– Hummm… Entendido. Vou aplicar esta técnica de triagem enquanto estiver trabalhando aqui na estação. Te passo os relatórios de ação virtualmente.
– Ok, boa sorte Comandante!
Encerrada a chamada, Kauane suspirou. Ela costumava deixar pra triar os recursos que ia achando pelo caminho depois, todos de uma vez… e realmente já havia perdido alguns que se misturaram com lixo espacial. Bem, daria mais trabalho fazer do jeito que o engenheiro orientou, mas se isso significava não mais perder recursos preciosos…
A limpeza da estação demorou. O carrinho de coleta de Kauane nunca havia sido tão útil antes. Havia muita coisa entre os escombros, máquinas desativadas e estruturas do ônibus espacial. A astronauta sempre ficava admirada com quanta coisa útil encontrava em meio ao “lixo”. Sorte a dela, suas preciosidades couberam todas no carrinho; ela não precisaria de mais uma viagem.
Ligou novamente para Renan, procurando por uma nova orientação:
– Renan? Pode falar agora?
Mais uma vez, a chamada foi respondida em poucos segundos, calorosamente:
– Na escuta Comandante Kauane! Como foi a triagem?
– Foi adequada, eu diria. Consegui separar tudo que importa para meus projetos. Preciso de uma indicação para os próximos passos agora.
– Ah, sim. É importante, agora, criar aí na Buran II um espaço para categorização e destinação. Você tem seu coletor, que serve como forma de transporte dos resíduos, agora precisa de um local para armazenamento temporário desses resíduos.
– Certo, mas por que preciso armazená-los temporariamente? – Questionou, estranhando a naturalidade da indicação do colega – Não posso só levar para a nave?
– Bem, você até poderia… Mas imagino que nem tudo que você tenha aí vai ser usado lá, né? Pelo que me contou alguns projetos você pretende operar aí na estação desativada mesmo, então seria legal fazer um espaço para categorização, assim você separa o que fica e o que vai. Ah, outra coisa, o que vai fazer com os demais resíduos sem utilidade, aqueles que você encontrou mas não levará para a nave consigo?
– Eu separei eles numa pilha única para, depois, destinar pra reciclagem. Sem entrar em muitos detalhes, ainda não reciclamos com propriedade aqui no espaço, não temos uma estação pra isso… Enquanto isso eu pretendo deixar estes resíduos separados, pra não ficarem à deriva por aí.
– Entendi. Bem, nesse caso é realmente fazer caixas de separação de armazenamento temporário. Isso vai facilitar sua vida depois, pois quando tiver uma maneira apropriada de fazer a reciclagem não haverão toneladas e toneladas de lixo espacial pra catalogar e separar. Com as caixas de destinação eles já estarão separados, entende?
Kauane pensou por um momento. Lembrou da pilha de resíduos que havia se formado: metais variados, detritos orgânicos, estruturas siliconadas… tudo junto e misturado na pilha de “sem utilidade”. Só de pensar no trabalho que ela teria depois para separar o acúmulo de resíduos a astronauta sentia dor de cabeça.
– Está certo, Renan. Vou criar um espaço aqui em Buran pra destinação então. Algumas caixas devem servir pra separação, certo?
– Isso, algumas caixas grandes com redes ou grades de proteção em cima, permitindo que você veja o que tem dentro mas sem deixar os itens flutuarem pra longe com o Zero G. Seria interessante fixá-las na estrutura da estação e você pode também identificá-las de forma intuitiva, com etiquetas fáceis de ver de longe. Assim terá noção do que tem na caixa e quão cheias elas estão.
– E nas minhas missões de coleta, assim que eu pensar na destinação dos itens já poderei ir armazenando elas na caixa apropriada?
– Exatamente, você não lota seu carrinho coletor assim. Ele vai servir pra coleta inicial e depois pro transporte final dos resíduos, seja da estação para a sua nave ou qualquer outro espaço que precisar levá-los.
– Maravilha então! – Respondeu a astronauta, repentinamente animada – Vou providenciar as caixas e fazer a separação e catalogação dos itens. Assim que eu finalizar aqui entro em contato novamente. Obrigada, Renan.
– Não tem de quê, Comandante! Precisando é só chamar.
A jovem conseguia, cada vez mais, ver o processo se delineando.
Conforme ia ajustando o espaço, as caixas e separando os resíduos devidamente, o espaço da antiga estação abandonada ia ficando mais e mais limpo. Não havia luz constante, ela ainda não tinha providenciado essa parte, mas quando lançava a luz da sua lanterna sobre o ambiente, via que as coisas já começavam a mudar. Era isso que ela precisava – de mudanças, urgentemente.
Finalizado o processo de organização, de catalogação e armazenamentos, tanto dos recursos utilitários quanto daqueles que – um dia – seriam reciclados, a astronauta sorriu, feliz em ver que seu trabalho duro valeria a pena. Novamente, pelo que deveria ser a última ligação do dia, iniciou a chamada com o seu amigo da Terra:
– Estou de volta, Renan. Consegue me ouvir?
– Alto e claro, comandante – Respondeu prontamente o engenheiro, que parecia estar esperando pelo retorno da astronauta – Qual a situação atual?
– Tudo pronto para operação contínua de destinação. A estação também já tem outra cara; irei te enviar o conteúdo visual que fiz do lugar: está começando a ficar decente.
E engenheiro riu do outro lado da galáxia:
– Ah é? Que bom. Sabia que seria você a responsável pela transformação deste lugar!
– Pode até ser, mas ainda tenho um longo caminho pela frente se eu quiser mesmo transformar as coisas. – disse ela, pensativa – De qualquer forma Renan, preciso de uma última orientação sua.
– Pode falar.
– Agora que já separei os itens que irei levar comigo voltarei para minha nave. Lá, farei o inventário dos recursos atuais para ser enviado para a Estação Espacial Internacional e, de lá, distribuído para as agências espaciais. São as diretorias destas agências que aprovam as Missões de Nível S, visto que elas têm resultados que impactam toda a população terráquea… Eu não posso dizer muito mais sobre a minha missão primária, agora, mas preciso enviar esse inventário de forma otimizada e o quanto antes.
– Sem problemas, Comandante, não irei perguntar sobre. Bem, eu já vi seu inventário… Apesar de ser impressionante a riqueza de detalhes que constam na catalogação dos recursos, eu senti falta do inventário das ferramentas e dos itens de conexão que você tem disponível consigo.
– Itens de conexão?
– É. São aqueles itens consumíveis, como cola industrial, fita isolante, refil de maçarico, aquelas cartas coringa que servem pra quase toda a situação, e ainda outros especiais que servem pra as outras situações. Essas coisas que você usa pra dar liga, pra conectar um recurso a outro. É importante ter um inventário detalhado destes itens, principalmente se as agências espaciais precisam saber dos teus recursos para aprovar uma missão importante.
– Entendo Renan. Vou fazer o seguinte: vou organizar meus itens de conexão e as ferramentas que tenho comigo, fazer o inventário deles nos mesmos moldes do meu inventário de resíduos; terminando, eu mando pra você conferir se seria interessante acrescentar mais alguma informação, ok?
– Claro, será um prazer ajudar!
– Certo. Te envio os arquivos e entro em contato final em breve, então! Câmbio
– Estarei no aguardo, Comandante K. Câmbio.
De todas as tarefas do dia, esta era de longe a que Kauane apreciava – não pela catalogação, mas pelas ferramentas, por poder manusear seus itens preciosos. Saber o que tinha lhe dava segurança em agir. Agora, com condições ainda melhores de operar seu processo, essa segurança lhe transbordava, enchendo a jovem astronauta de determinação e confiança. O projeto daria certo, tinha certeza; as diretorias aprovariam a etapa final e logo ela poderia colocar em prática aquilo que seria a missão de sua vida. Finalmente… Finalmente ela seria capaz de ajudar a Terra, de verdade.
Uma vez finalizado o inventário, Kauane enviou os arquivos digitais para o engenheiro, esperou um tempo e deu início à chamada de voz, esperando ser atendida.
Os primeiros minutos de atraso eram de praxe, era comum que Renan tivesse obrigações em seu posto, como o engenheiro adequado da base espacial que era, e por isso podia não atender tão prontamente; depois de 30 minutos sem resposta, Kauane riu sozinha ao pensar que o colega poderia, não sei, ter ido ao banheiro? Depois de uma hora e meia sem resposta, se perguntou se algo havia acontecido. Deveria esperar, é claro, não havia como saber sem que ele respondesse. Assim, se resignou e foi conferir por si mesma o inventário mais uma vez, depois foi ver se havia mais algo pra ser organizado na nave. Afinal, qualquer que fosse o imprevisto que o engenheiro estivesse lidando, logo daria sinal de vida.
Mas não. Um dia, uma semana, um mês sem resposta… Depois disso, Kauane parou de tentar ligar, parou contar há quanto tempo não tinha resposta do amigo. Ela sabia que cada aventura tinha seu tempo e seu espaço, que as conexões eram preciosas e o tempo também. O que quer que tivesse sido aquilo, ela era grata pela ajuda que recebeu enquanto recebeu. Para o amigo perdido, aonde quer que estivesse, ela sempre desejaria o melhor.
E quanto a ela? Bem… Ela precisava seguir em frente, para sua missão. Precisava seguir mesmo que, novamente, estivesse sozinha no espaço.