A direção estava definida, o plano, em andamento. Desde que foi lançada no espaço já havia iniciado e terminado diversos projetos, agora não deveria ser diferente. Mas era.

Não era a dificuldade da execução ou a quantidade absurda de perigos que havia vivenciado para chegar ali, era a simples importância daquele projeto que o fazia tão especial.

Kauane nunca havia se sentido tão perto de casa, tão exausta e feliz ao mesmo tempo.

Depois da aprovação do seu inventário pelas agências espaciais terráqueas, a Estação Espacial havia liberado a continuação do plano de ação, enviando esquemas atualizados e até mesmo alguns recursos e ferramentas para a astronauta dar sequência ao projeto. Logo, a jovem atualizou seus inventários, levando em conta os novos ganhos, selecionou tudo que precisaria para trabalhar e alocou tudo no cantinho que reservara para trabalhar com o projeto na Estação Buran II.

E assim passara para a próxima etapa: colocar a mão na massa! Ah sim, essa era, sem dúvida alguma, a parte mais divertida de todas. Nada no universo era mais prazeroso do que começar a criar a partir de um plano criado a partir da sua própria imaginação!

O desafio era um só: transformar aquele lugar em uma estação de reutilização espacial – melhor do que uma estação de reciclagem, que utiliza energia extra para transformar um resíduo novamente em produto consumível, a reutilização dá nova vida ao resíduo ao adequá-lo como parte integrante de um novo dispositivo. Com milhares de partes sobressalentes à deriva pelo espaço, resíduos que poderiam ser aproveitados por alguém e para algo, Kauane sabia que era a melhor escolha. Precisava dar um jeito de limpar o universo para o qual o ser humano ousava, precisava encontrar uma salvação para o desperdício e a poluição… E agora ela sabia por onde começar a transformação de todo um espaço, um espaço não tão distante de sua casa…

Ela começou pelo coletor.

Seu carrinho não era suficiente para simplesmente pegar todos os resíduos que haviam flutuando por aí; mal dava para uma limpeza completa de uma antiga estação espacial desativada, quem dirá para quantidade de lixo espacial à deriva ao redor da Terra e para além dela? Por isso ela havia criado um suporte: T.E.R.R.A, que significava nada mais nada menos que Transportador Espacial de Resíduos para Reutilização Ampla. Era uma robô do tamanho de uma nave pequena, que tinha em sua programação básica um objetivo principal: recolher os resíduos espaciais de uma área delimitada manualmente.

A astronauta sorriu ao pensar nas ironias da vida.  Era para TERRA que Kauane tinha usado o motor que havia criado a partir de lixo espacial. Agora, este robô ajudaria a coletar ainda mais sucata, que seria então levada para Estação de Reutilização que ela estava desenvolvendo em Buran, e depois transformada em algo útil novamente. Tinha dado início a um ciclo contínuo de limpeza e recriação, um novo marco para a Primeira Era Espacial da Humanidade!

Ela ainda estava sozinha para analisar, desenvolver, aplicar, construir e fazer o que tinha que ser feito, mas quem sabe por quanto tempo? Assim que estivesse tudo nos eixos e a estação operando perfeitamente, o programa espacial deveria mandar mais tripulantes para ajudar a dar continuidade na operação de limpeza… Ela suspirou ao pensar em uma Buran II com vários tripulantes, operando as máquinas construídas ali… Ah sim, ela as havia construído sozinha, mas depois elas com certeza seriam modificadas pelos novos tripulantes, otimizadas em versões ainda mais únicas! Ela já havia planejado: quando isso acontecesse, a Estação seria rebatizada. Chamaria-se então, Nhandecy, a mãe de todos os seres.

A verdade é que Kauane havia sido a última, em muitos anos, a ser enviada para o espaço e ali havia ficado, só, desde então. Houve uma época que o espaço era considerado promissor para a vida na Terra, mas hoje em dia… era perigoso. E a Terra não estava muito melhor. Por isso a astronauta lutava. Lutava pela revitalização, do espaço, da Terra e da própria humanidade.

Parou um momento suas reflexões, pois já havia se estendido. Ela precisava começar. Haviam muitos resíduos a serem recolhidos.

Era uma graça ver o robô TERRA funcionando. Kauane não sabia como tinha feito para acabar assim, mas jurava que o design metálico e avermelhado o fazia parecer um peixinho dourado gigante, com a escotilha que “sugava” os resíduos como boca e lemes de controle lateral como as nadadeiras, era até engraçado, divertido. Talvez algo em seu inconsciente a tivesse feito copiar um peixe? Bem, de qualquer forma, ele funcionava!

TERRA ia navegando pelo espaço, seguindo as coordenadas que Kauane inseriu pelo seu transmissor de pulso – pra começar, uma volta ao redor de Buran II. Era um teste, qualquer imprevisto ou mal funcionamento e a mulher poderia intervir rapidamente, resgatando o robô coletor e seu precioso motor acoplado. A capacidade de coleta de TERRA era medida por peso, logo, conforme ele ia recolhendo o lixo espacial o visor da astronauta ia sendo atualizado. Assim, ela poderia interromper a atividade a qualquer momento, indicando para o robô onde ele deveria depositar o conteúdo.

Se desse a sorte de encontrar um módulo de inteligência interartificial ele seria o primeiro a ser incluído no projeto para aumentar a potencialidade da tecnologia de coleta.

No começo ela estava empolgada, era simplesmente recompensador ver o robô funcionando, coletando e despejando no duto de recepção que ela havia construído na Estação de Reutilização. Acontece que depois da décima vez que o robô voltara para o ponto inicial, o processo de ida e volta não apenas tinha se tornado maçante, mas extremamente perturbador. Haviam sido 10 cargas completas e, ainda assim, nem metade do lixo espacial que circundava Buran havia sido recolhido ainda. O desespero começou a inundar a cabeça da astronauta.

Se só ali já havia sido aquela quantidade, quantos coletores seriam necessários para fazer a limpeza de espaços mais próximos à Terra propriamente dita?? Precisaria de centenas, não… MILHARES de coletores! Ou Coletores muito, muito maiores…

Ela lançou um olhar aflito e avaliativo para sua estação pré-concebida… Aquele lugar sempre havia sido tão pequeno assim? Olhou pra si mesma então, reparando ser ainda mais pequena… O espaço era enorme, e a quantidade de lixo presente nele também, afinal. A sensação de impotência diante todo o estrago a ser reparado era incomensurável e tudo aquilo soou insignificante para Kauane.

Mas então ela olhou para o espaço ao seu redor e reparou, ao longe, uma pequena esfera reluzente. Era a Terra, sua casa. Ela então lembrou o porquê.

O Robô TERRA, a Estação Buran II e todos os demais projetos relacionados podiam ser pequenos passos para Kauane – minúsculos até, mas que acabariam sendo um salto gigantesco para toda a vida humana.

Era por isso que ela trabalhava sem parar, motivada pela esperança ativa. No espaço o único som que ela podia ouvir era de si mesma, do seu coração, sua respiração automatizada no traje e seu trabalho. Era isso que a movia todos os dias.

Ela respirou e lembrou-se, mais uma vez:

“Um passo de cada vez”.

Ainda estava apavorada. Sabia o que a aguardava pela frente, que o desafio não acabava ali em seu robô e sua estação. Havia mais, muito mais a ser feito, tanto no espaço quanto na Terra.

Mas apesar de perturbada, Kauane se sentia, pela primeira vez e sabe-se lá em quanto tempo, conectada. Ela sentia o vínculo umbilical entre sua existência, tão efêmera quando um suspiro dado pelo universo, e tudo ao seu redor, tudo aquilo que um dia fora ou seria, tudo aquilo que, por si só, era – assim como ela, naquele exato momento em gravidade zero, também era.

Olhou para a Terra novamente, mas com um novo olhar. Ela ainda estava distante, mas o brilho azul opaco que vinha direto para o visor de seu capacete agora reluzia com simplicidade. Tudo que aquele pedaço flutuante de rocha que ela ousava chamar de lar tinha, era único. Os mares imensos e salgados, os pores-do-sol de tantas cores, as plantas e os animais exóticos, a humanidade arrebatadora… Era tudo ligado a quem ela era, e ainda assim, onde estava a mulher? No espaço. 

“Por que eu vim para o espaço?”

Já havia se feito a mesma pergunta várias vezes, mas sempre voltava sem uma resposta para a questão. Hoje, porém, ela sabia que somente se afastando alguns passos poderia compreender melhor a vida naquele planetinha azul; era somente ao se afastar da humanidade que poderia compreender sua preciosidade. Era isso o que estava fazendo no espaço. Estava garantindo que, mesmo com pequenos passos, o amanhã se aproxime cada vez mais do natural.

Afinal, seu desenvolvimento já ocorria em tempo útil. A principal habilidade ela já tinha desenvolvido graças a todos aqueles momentos que o caos oportunizava inovar algo; sua inteligência criativa havia combinado muitas peças que representavam de maneiras únicas aquilo que ela poderia fazer de melhor para sustentar a vida no planeta.

Kauane suspirou mais uma última vez, vez que sabia que não seria a última, afinal, nunca podemos nos dar por satisfeitos. E enquanto ela voltava para dentro de sua Estação, pronta para continuar suas atividades, ela sentiu prazer ao olhar as pequenas mudanças que fizera. Sentiu intimamente que não havia melhor recompensa em todo o universo do que a transformação. Em seu trabalho, atuava pela criação, com diversão e para a natureza, e isso a fazia sentir viva. Kauane estava cansada de só sobreviver, até porque a vida não nos espera. É hoje que temos que agir, pois agora é a hora perfeita para recriarmos nosso futuro.

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