O radar da nave já não soava há um tempo… Fazia sentido, é claro, ainda que o nível de “lixo” espacial no espaço fosse altíssimo – elevados até demais considerando a quantidade de pessoas necessárias para produzi-lo – apenas 1 em cada 100 planetas tinha realmente algo interessante, que valesse o deslocamento.
A astronauta Kauane, entretanto, ganhava tempo ao procurar seus tesouros; ela sabia exatamente o que precisava quando partia em busca de um sinal, filtrando suas buscas pela composição química dos recursos que queria. Ela já estava acostumada a explorar atentamente, sempre em alerta para qualquer que fosse sua necessidade.
Desde o fiasco com a mochila e as tralhas jogadas no chão Kauane havia se reorganizado. Era uma nova mulher, uma mulher que tinha adquirido o hábito de classificar os seus recursos! Havia construído um refúgio, um espaço pequeno (mas rico!) na sua nave onde podia-se encontrar toda matéria de que precisava para construir ou reconstruir. E separar por cores, formatos e utilidade era útil, mas o que mais facilitava sua vida era ter tudo que precisava bem à mão, disposto em caixas transparentes que a ajudavam a ver o conteúdo de dentro e poupar tempo na hora de trabalhar.
As ferramentas, é claro, ficavam exatamente onde serviriam melhor: logo acima da bancada de trabalho, em painéis fixados na parede da nave. Ah, mas não eram quaisquer painéis, não senhor, nada do tipo “faça você mesmo” que se encontra aos trilhões pela internet hoje em dia… Não. No painel de trabalho, cada ferramenta tinha um encaixe único que a própria astronauta tinha criado com as tralhas que achara durante suas viagens. Isso, de forma curiosa, havia se mostrado muito útil: hoje ela sabia exatamente onde estava o quê de forma intuitiva, afinal, haviam sido suas mãos que construíram o espaço. Assim, seguiam guiando-a com fluidez, tornando o processo de procura muito, muito mais simples!
Mas não era isso. Não, ela sabia o que queria, também sabia o que tinha disponível. O problema era um pouco mais simples dessa vez, mas igualmente difícil de resolver: ela simplesmente não achava o que precisava em lugar algum.
Estava vagando há meses e nem sinal do recurso naquela galáxia enorme!! Se fosse qualquer outra coisa, qualquer outra missão… Mas não. Era simplesmente o projeto de uma vida, sua criação mais importante. E pra isso ela precisava de um motor. Imagina só, parece impossível achar algo tão complexo quanto um motor, vagando, perdido por aí em algum canto obscuro da galáxia, não é? Ah, só um explorador espacial sabe tudo que se encontra em órbita por aí…
Bem, Kauane tinha tentado. Ela era resiliente, mas não tinha tanto tempo assim pra gastar. No ritmo que as coisas estavam, pelos seus cálculos atualizados, levaria pelo menos mais um ano para conseguir achar um motor utilizável pra fazer uso. Tinha sido teimosa ao tentar se virar sozinha por tanto tempo. Agora, mais do que nunca, ela sabia que precisava dar alguns passos pra trás, parar de pensar tanto como uma guardiã espacial e olhar mais pras coisas como terráquea. Como a humana que sempre fora.
A humana agora se aproximava com a nave de uma antiga estação espacial. Era nada mais nada menos que um velho patrimônio terráqueo, um dos primeiros ônibus espaciais funcionais que a Terra havia construído. Naquela época, ainda com aquela mentalidade boba de um querer mostrar que era melhor do que o outro, as corridas especiais geraram não apenas muitos avanços, mas infelizmente muito prejuízo também. Houveram centenas de foguetes construídos às pressas e dezenas de estações espaciais projetadas de maneira insustentável, tudo na ânsia de conquistar o espaço. O resultado fora, repetidamente, um retrato do que Kauane deslumbrava agora: uma estação inutilizada na companhia de milhares de detritos espaciais em órbita, tudo jogado no espaço, à deriva. E pensar que aquele lugarzinho abandonado ao relento, era, no momento, o que Kauane mais queria ver no Universo todinho!
A nave não tinha onde pousar, então a astronauta a deixou em posição estacionária parada não muito longe da antiga estação espacial. Ela abasteceu rapidamente sua maleta de ferramentas de campo com o kit básico de reparos para condições externas: desmontagem, medição, corte e conexão; ainda haviam as especiais, aquelas que sempre serviam para os objetos mais difíceis de cortar. Kauane tinha tudo que precisava, e por isso não podia esquecer do principal: sua criatividade. Ora, quando se está no espaço você tem que ser inventivo! Ela pegou a menor versão de cada uma das ferramentas, as mais apropriadas pra levar consigo em um ambiente desconhecido em que os movimentos não podem ser atrapalhados, ajustou o traje para o ambiente externo e checou o tanque de oxigênio. Tudo certo. Abriu a escotilha da nave e ligou os propulsores do traje, voando em pleno abismo do cosmos.
Se aproximou voando lentamente. Desviando dos detritos que rotacionavam em baixa velocidade, a jovem procurou a suposta entrada do ônibus espacial até encontrar uma porta, que um dia havia sido vedada, agora quebrada. Bem, isso deixava tudo mais fácil, não é? Se esgueirou pelo rombo que havia na antiga porta, e encontrou chão para pousar. Ligou a lanterna do traje para conseguir ver exatamente onde estava, descobrindo aquilo que provavelmente deveria ter sido o corredor principal da estação abandonada.
Com cuidado, a exploradora desativou os propulsores da roupa, deixando o peso do corpo pousar sobre o piso gelado da plataforma. Começou a se movimentar, andando em frente com passos suaves. Não sabia exatamente quanto tempo a estrutura estava ali, nem exatamente aonde e quanto estava danificada, então tinha que ser cautelosa ao explorar. Felizmente tudo parecia bem. O chão não estava muito danificado, fora uma ou outra tubulação quebrada saindo da estrutura, algumas rachaduras maiores e sinais de infiltração de água aqui e ali… O tempo havia passado para a estação obsoleta, mas o metal havia sido feito para durar, tendo cumprido um papel relativamente bom nessa tarefa.
Mesmo que estivesse tudo certo, Kauane mal respirava. O tanque de oxigênio estava bem, o traje ainda conseguiria lhe proporcionar uma boa quantia de ar, o suficiente para explorar a estação e voltar algumas vezes. Provavelmente era só nervosismo. Fazia anos e mais anos desde que Kauane havia estado tão próxima de uma outra estrutura humana além de sua própria nave. Aquele visual metálico, com paredes rachadas e tubos quebrados, tudo isso num ambiente escuro e sem luz, a lembrava vagamente daqueles filmes de ficção antigos… Ela podia jurar que o próprio “Alien” estava esperando atrás da porta que agora se preparava para abrir. Por sorte não tinha Alien, só a central de comando da estação.
Ela suspirou, aliviada. A central de comando provavelmente era onde a estação de comunicação ficava. Ela aumentou a luz do traje, lançando um brilho forte e repentino ao longe, que refletiu de volta um grande monitor vinculado à uma espécie de supercomputador velho. Kauane sorriu, empolgada e ansiosa pra sair daquele lugar incrivelmente sci-fi. Alguns passos apressados foram o suficiente para fazê-la lembrar que deveria ter mais cuidado.
Provavelmente ela veria o buraco se não tivesse sido tão apressada, ou se não tivesse jogado a luz tão ao longe na sala. De qualquer forma, a queda repentina a fez soltar um grito de puro medo! Demorou quase 1 segundo inteiro para que ela instintivamente lembrasse de ligar os propulsores do traje de novo, fazendo seu corpo parar no ar com uma freada brusca. Ela controlou a subida para a sala novamente, subindo devagar e engolindo em seco. Desligou a propulsão apenas quando sentiu que havia um chão abaixo de si novamente, ajustando a luz da roupa para o modo normal a fim de ver realmente bem onde estava.
Ok, talvez tenha sido um pouco apressada demais, mas quem nunca ficou tão ansioso ao ponto de cair por um buraco de 15 metros de diâmetro, não é? A verdade é que a sala era enorme e, no escuro, o buraco igualmente enorme se escondia muito bem. Desta vez, ao invés de ir com sede ao pote, a mulher achou melhor ir ladeando a sala, percorrendo sua extensão próxima (pra não dizer colada) à uma das paredes curvas da central, e assim até chegar ao suposto painel de comunicação.
Foi necessária uma inspeção cautelar, mas, por sorte, a estação pôde facilmente ser ligada à central de energia da sua nave e, fora uma faísca aqui e ali, Kauane conseguiu fazer o sistema funcionar. Em menos de uma hora conseguiu arrumar tudo que precisava pra fazer uma chamada pra casa.
Certo, não era bem “casa”, mas era similar.
A astronauta fez o procedimento padrão para uma transmissão intergaláctica, algo que nem imagina ainda lembrar de como fazer… Agora era só torcer pra funcionar. O equipamento era antigo, mas…
– Alô? – disse uma voz estranhamente comum pela transmissão, uma voz humana – Alguém na escuta?
O coração da garota parou. Ela queria falar, mas tinha esquecido como.
– Estou captando o sinal de um ônibus espacial desativado, tem alguém aí?
– Sim!! – disse Kauane, num estalo, como se lembrasse como falar – Astronauta Kauane para Terra, estou falando da Estação Espacial Buran II!
– Buran II? Isso está certo? – disse, desconfiado o homem do outro lado da “linha” – Espera, você disse astronauta Kauane? Aquela que…
– Isso mesmo – interrompeu ela – A última astronauta que o programa espacial enviou pra fora da Terra… Eu sei que passou muito tempo desde que eu entrei em contato, mas preciso de auxílio. É uma questão urgente e acredito que somente um engenheiro de manutenção da Terra pode me ajudar agora.
– Certo, espera aí… Como você está transmitindo de Buran II?? Aí estava desativado…
– Digamos que eu “dei um jeitinho”. Apenas usei o que tinha aqui e ali…
– Mas estava desativada! Como você…
– Olha, eu realmente estou com um problema que precisa ser resolvido o quanto antes, pro meu bem e pro de toda a Terra… Então se você puder chamar um engenheiro pra mim, pode ser qualquer um…
– Ah sim, claro, pode falar! Eu sou engenheiro, meu nome é Renan. Como eu posso te ajudar??
Kauane suspirou. Era um terráqueo. Depois de tanto tempo, um ser humano lá da Terra…
– Estou com problemas em relação aos meus recursos. Minha missão depende de um motor simples, nada muito grande, mas não acho nada assim durante minhas explorações, então preciso construir um. – ela explicou calmamente – Ou seja, preciso dos esquemas de um projeto de motor.
– Nossa. Tá, vamos com calma. Pra que exatamente você precisa de um motor?
– Eu não estou autorizada a falar sobre isso – respondeu, um pouco contrariada – A bem da verdade eu não estou autorizada nem mesmo a entrar em contato, então… se você não puder me ajudar, basta dizer, que irei procurar outra forma de…
– Não, não – interrompeu o homem, nervoso – claro que eu ajudo, você é uma heroína do programa espacial! Vou te passar os esquemas, eu só estava curioso. Não é todo dia que recebemos pedidos de projetos de motor do espaço, haha… Aliás, pensando nisso… Você comentou ter problemas com recursos, tem certeza que vai ter tudo que precisa pra montar o motor? Os projetos ordinários precisam de várias peças-base.
Kauane contorceu o rosto. Estava tão acostumada a se virar com o que tinha, a fazer seus próprios projetos e esquemas de construção e reparos, que esqueceu que os projetos de engenheiros da Terra provavelmente usariam peças específicas, do tipo que ela não encontraria ali…
– Eu não sei, Renan…
Por um minuto ambos ficaram em silêncio. A astronauta perplexa por estar ali e não ter pensado direito sobre seus recursos…
– Você por algum acaso não teria um inventário onde tem o controle dos recursos disponíveis, Kauane? – perguntou Renan, gentilmente.
– Tenho, tenho sim – respondeu ela, desconfiada.
– Bem, então se você puder me enviá-lo eu posso procurar algum esquema de motor que utilize o que você tem disponível. Fica bom assim pra você?
– Eu tenho material fotográfico e de vídeo – explicou ela, desconfiada da sorte – Você consegue fazer isso com essas fontes?
– Consigo sim. Basta me enviar o inventário no formato que for que eu também “dou um jeitinho”.
A astronauta sorriu involuntariamente. Rapidamente, clicou em uma série de botões no bracelete do traje, pegou as coordenadas do transmissor da estação terrestre e enviou o conteúdo com as imagens e vídeos de seu inventário para o engenheiro.
– Pronto, o inventário foi enviado.
– Acabei de receber aqui – respondeu o homem – Só um momento que vou checar se tenho algum projeto que se adeque!
Algum tempo depois da transmissão muda, Renan voltou, dizendo:
– Consegui! Você tem um estoque bem interessante, hein?
– Está falando sério? Bem que eu gostaria de ter mais coisa… São meus tesouros… Mas são poucos tesouros.
– Olha, se você quiser eu posso manter seus relatórios no servidor da nossa base, assim, caso precise de algum outro esquema, ou em alguma situação mais complicada, de peças mesmo, podemos nos comunicar pra ver o que cada estação tem.
– Renan, você está realmente falando sério? Você pode fazer isso?
– Bem, em tese sim. É um pouco complicado, mas posso conseguir pra você.
Kauane sentiu o ar faltar de novo. O quão o ser humano podia ser amigável e prestativo… Ela não se lembrava. Era algo bom que ela tinha desaprendido a lidar.
– Sim, seria muito bom, eu agradeço se pudermos manter o contato. Fico contando com você.
– Perfeito então. Ah, até me esqueci, temos 2 projetos aqui que se enquadram nas suas peças… Posso enviar os esquemas para a estação de Buran II, mesmo?
– Sim, por favor! – a astronauta sorriu, imersa em satisfação!
– Certo, está… Pronto. Boa sorte com seu projeto. Foi um prazer conhecê-la astronauta Kauane, precisando é só me contatar. Câmbio.
– Obrigada Renan. Câmbio!
Naquele dia Kauane saiu às pressas de volta para a nave. Não estava verdadeiramente com pressa e fazia muito tempo que as coisas não se encaminhavam tão bem. Ela tinha um projeto de motor para construir com as peças que tinha disponível; não havia ar faltando ou ácido caindo do céu; até mesmo a sensação gritante de solidão havia diminuído um pouco, mesmo ali do espaço infinito e escuro. Ela havia lembrado, afinal, em meio a toda a sua solitude, havia lembrado. Não importa o quão longe estamos uns dos outros, humanos nunca estão verdadeiramente sozinhos.