Depois da tempestade sempre vem a calmaria, é o que diz o ditado. Bem, pelo menos na Terra deve ser. No espaço a coisa é um pouco mais complicada…
Em um planetinha qualquer da galáxia mais próxima há um belo exemplo disso: um espaço adorável, de montes pedregosos extensos e um lindo céu laranja avermelhado. Não fosse o cheiro de enxofre no ar, seria um ótimo lugar pra se passar uma tarde. Isso, é claro, e as constantes tempestades com nuvens carregadas de ácido sulfúrico.
Kauane nunca tinha visto uma chuva ácida antes de ser enviada para aquele quadrante espacial. Agora, não via (ou ouvia) nada além disso há horas. De uma das escotilhas de vidro reforçado em polímero, a astronauta observava atentamente a chuva esverdeada açoitando tudo ao redor da nave. O crepitar era incessante. Não importa de que ângulo olhava, tudo o que via para além de si era o ácido queimando tudo, tudo… Quase tudo na verdade. Ao menos era por acreditar nisso que ela estava ali.
A chuva havia parado e a exploradora pôde finalmente ouvir os próprios pensamentos novamente. Ahhh, era simplesmente bom demais! Mas, como sempre, não tinha muito tempo a perder. A jovem apertou um dos botões maiores do bracelete automático atado ao pulso do traje pesado que usava, que emitiu um som alto de ar empurrado pelo pistão da válvula de segurança da roupa; o capacete fechou sobre o rosto de Kauane, segundos depois a porta da nave se abriu e ela disparou para fora.
Estava tudo pronto. A astronauta tinha criado seu carrinho coletor com recursos que achara durante suas outras explorações, projetando esse último modelo pensando justamente nesse tipo de ambiente hostil. Graças a esse detalhezinho de nada, a dificuldade em sair da nave empurrando aquela caixa maciça com rodas era quase inexistente. Por certo seria mais simples ir lá fora sem nada, mas aí a astronauta também não teria motivo para sair… Não. Sua missão, agora, dependia daquele coletor.
Ao deixar a climatização da nave e penetrar diretamente na superfície do planeta, a jovem pensou que certamente o último nível do inferno deveria ser menos quente do que ali! Mesmo que seu traje repelisse o calor exorbitante da atmosfera, ainda sentia as gotas de suor escorrendo pela testa dentro do capacete.
No momento em que mentalmente se comparava a um picolé derretendo na praia, Kauane, em meio às nuvens baixas de gás do planeta, avistou seu objetivo: destroços intactos de uma nave semi-nova mergulhados em uma poça gigante de ácido borbulhento. Nunca havia sido tão feliz por olhar algo tão perigoso antes!
Rapidamente a astronauta colocou seu carrinho de canto e foi inspecionar a situação pessoalmente. Chegando mais perto, fez um scan da área para ver se captava algum sinal de vida, mas o radar nada indicou; apenas algumas peças e partes da nave pareciam ter se salvado da queda… Ela suspirou. Já esperava o resultado, mas isso não fazia a situação mais fácil de se superar.
O foguete alheio havia caído no planeta há alguns dias, lançando um sinal de socorro no espaço – um sinal que a jovem tinha recebido e seguido até ali. Ela atendeu ao chamado prontamente, mas a frequência se perdera tão rapidamente quanto havia surgido. Resultado? Dias perdidos de busca no escuro, sem saber em qual dos mil e um planetinhas a nave tinha colapsado, sem saber se quem pedia por socorro ainda estava lá… Agora, depois de tanto buscar, finalmente tinha achado o local da queda, mas era tarde. Não via mais ninguém para salvar.
Kauane tentou não pensar na vida e na morte; tentou não pensar em perda ou em saudade; tentou desesperadamente não ceder ali, em meio a um inevitável rio de ácido e nuvens cada vez mais densas se aproximando para despejar sobre sua cabeça mais dor e mais sofrimento. Assim, pesada e ainda aturdida, a garota encontrou apoio no que lhe restava de sua missão ali: resgate de tralhas. Ela respirou fundo, chacoalhou a cabeça e, decidida, pôs-se a raciocinar novamente.
Alguns metros para trás e pôde rever seu carrinho coletor pacientemente esperando por ela. Sem perder mais tempo, a exploradora segurou firme nas laterais e o empurrou até perto dos destroços da nave, abrindo a câmara de supressão que havia na gaveta do equipamento. Com cuidado (e com luvas!), começou a remexer na poça, buscando utilidades para se salvar do líquido corrosivo e verde que ali havia. Não demorou mais que 2 minutos pra começar a achar uma ou outra coisa interessante.
Entre peças robustas, intactas e mecanismos complexos e compactos revestidos de proteção, um dos itens chamou a atenção da jovem: uma cápsula de cor vibrante que achou enfiando o braço (obrigada supertraje!) e revirando o fundo do depósito de ácido. Era perfeitamente azul e lisa, sem ranhuras, sem marcas de guerra. Era estranho… Não haviam arranhões na superfície do invólucro, nem uma manchinha de chamuscado ou qualquer indício de que aquela coisa havia queimado. Independentemente do que fosse, estava muito, muito bem protegida para não ter sofrido algum dano com a queda e o banho de ácido.
Kauane colocou tudo que achou no coletor e fechou a gaveta novamente, selando os itens lá dentro e levando-os para sua nave. Estava na hora de limpar!
E agora a dica do dia: nunca, repito, NUNCA, deixe cair ácido no tapete de casa. Além de fazer uma bagunça daquelas, bem, ele queima. A comandante estelar infelizmente aprendera isso da pior forma. Já havia passado por um ou dois perrengues com ácido noutras aventuras e a lição que tirara disso era simples, direta e reta: ácido machuca muuuuito. Assim, a primeira coisa que fez chegando na nave foi higienizar seus preciosos itens novos, seu coletor e seu traje, que ainda estavam todos sujos com aquele líquido perigoso! Dava trabalho limpar agora, mas com certeza teria muito mais trabalho (e dor!) se suas duas mãos acabassem queimadas.
Ainda de luvas, ela colocou os itens dentro de um tanque de plástico que ficava próximo a jatos de gotículas de água que pareciam chuveiros. Devidamente posicionada no centro do portal de higienização da nave, acionou os jatos, reutilizando a mesma água que limpava o traje para limpar os itens colocados no tanque. O líquido utilizado era coletado e filtrado pela tubulação interna do centro de higienização, e o ácido era devolvido para a atmosfera de origem – não todo ele, entretanto, pois era sempre útil ter um pouco armazenado para alguma higienização mais pesada. Depois que tudo estava devidamente limpo Kauane sorriu.
– É agora que a parte divertida começa! – Pensou sozinha ao olhar para os achados – aparentemente inúteis – espalhados no chão. Estava na hora de desmontar!
Nesse universo uma coisa é certa: as coisas geralmente são mais do que parecem. A astronauta sabia disso também, assim como sabia de muitas coisas. Sucata espacial podia virar um carrinho coletor, as peças de um radinho de pilha podiam servir bem pra consertar um comunicador… Uma coisa sempre pode se transformar em outra.
O processo foi o mesmo de sempre. Desmontar com cuidado as peças dos equipamentos mais compactos pra fazer um belo inventário de pecinhas menores. Nem sempre se tem utilidade para um equipamento, mas as partes dele podem construir algo novo depois! Kauane tinha em mente exatamente as partes que seriam úteis; seus projetos de construção e reparos estavam esperando por peças, e ali ela encontraria várias.
Pacientemente ela desconstruiu as estruturas que tinha recolhido e separou as peças menores. No processo notou padrões: alguns tinham tamanhos parecidos, outros eram do mesmo material, alguns tinham finalidades únicas. Ela sabia que tinha que classificar cada um conforme os grupos que fosse notando. Estava farta de se perder na própria bagunça! Mas já tinha aprendido a lição. Uma prévia e boa classificação evitaria uma confusão organizacional futura. Além disso, ela gostava de saber o que tinha disponível…
– Isso me lembra… – Pensou ela, pegando a cápsula que refletia em azul celeste a luz artificial da nave. Era o último desmonte do dia. Depois disso ela ligaria a nave, sairia do planeta ácido e voltaria pra sua rota principal.
A jovem observou por um tempo a esfera perfeita. Tinha o tamanho de uma melancia madura e era tão pesada quanto uma. Ela balançou com cuidado a bola e sentiu algo se mexendo… Devia ser oca, o que significa que tinha algo dentro! Uma cápsula, realmente.
Demorou quase 5 minutos para entender como abrir aquilo já que não tinha nenhuma linha que indicasse um feixe ou abertura conectada para forçar… Ela mexia aqui e ali com suas ferramentas, tentando achar algum mecanismo, alguma coisa… Mas a comandante também estava receosa. Deveria realmente abrir algo tão bem vedado? Um item que resistiu a uma queda tão forte e ao ácido mortal ainda que o restante da nave e seu piloto, não? A comparação a deixava ansiosa. O que quer que estivesse guardado dentro daquela cápsula, deveria ser de extrema importância para ser colocado em algo tão bem projetado para durar quanto aquela esfera. Ela deveria mesmo abri-la? Tinha esse direito?
Independentemente da resposta que conseguiria com esta reflexão, não importava mais. Um movimento qualquer da ferramenta deve ter atingido alguma parte específica da cápsula, pois a mesma de repente abriu num estalo de ar suprimido! Kauane, atônita, parou tudo apenas para observar o conteúdo do recipiente azul.
Não era grande coisa, ainda assim, ela pegou o objeto e guardou consigo, no traje espacial, onde ficaria mais seguro. A astronauta sentou em sua cadeira na sala de comando, pronta para dar partida na nave e sair daquele lugar. Antes, porém, lembrou da nave no ácido, do pedido de socorro, do seu atraso. Sem pensar mais, ela chorou, sentindo o peso do tesouro da cápsula azul celeste, azul como sua Terra, seu lar.
No bolso da exploradora havia, impressa num papel firme, quadrado e laminado, uma foto de uma família reunida. A família da pessoa que não pôde ser salva. No canto lateral direito da imagem, escrito de canetão preto numa letra feia, jazia o seguinte recado:
– Estaremos contigo pra todo sempre, na Terra ou no espaço, para o infinito e além! Volte logo.
Mas Kauane sabia que ninguém voltaria.
Novamente, o espaço ao redor da jovem pareceu gigantesco, grande demais para alguém tão sozinha, tão pequena.
Ela deu partida na nave e foi embora. Novamente, começou a chover, mas isso não importava mais; tudo que importava era voltar pra casa, o mais rápido possível. Tudo que importava era a Terra. Tudo que importava era a calmaria que vem após a tempestade.